Sudão: da primavera, ao verão Árabe.


   O arrancar da década de 2010 teve como seu primeiro grande facto geopolítico o arrancar das convulsões sociais e políticas – provocadoras de revolução e revolta social, no Mundo Árabe, denominadas colectivamente por Primavera Árabe. Não obstante, desdobrados os processos políticos nos principais centros: na Tunísia, na Líbia, na Síria e no Iémen – só um dos casos se imputa à ao verdadeiro espírito aparente da primavera, a Tunísia – que vê o inaugurar de um governo moderado, democrata, respeitador dos direitos humanos. Em todos outros casos, da primavera fez-se inverno – levando estes países à velha trilogia fome, peste, guerra: fome na Síria, um país onde da revolução se fez guerra civil que perdura há 8 anos; peste na Líbia, onde a substituição de um governo eficaz por um vácuo, levou não só à degradação da saúde física - mas também à mental, com a inseminação de ideias perigosamente radicais, no território; guerra no Iémen, um país esquecido que no eclodir de uma guerra pós primavera, entre governo pós revolucionário e minoria Houthi – se encontra no meio da maior ‘guerra proxy’ congelada entre Arábia Saudita e Republica Islâmica do Irão. De entre estes todos, o caso interrupto do Sudão, pela gélida permanência do regime de Omar Bashir, veio esta primavera brotar a toda a força – caminhando para a possibilidade de no verão se concretizar a primavera.


   Tendo como pontapé de partida, toda a cadeia de reacções desencadeada naquele 17 de dezembro de 2010, pela auto-imolação deMohamed Bouazizi – o maior arauto de catalizador da precipitação do fim do regime não-democrático vigente desde, e antes da independência da França de Tounes,  e após convulsões e retrocessos, do antigo regime oligárquico, corrupto, economicamente inflacionado - brotou uma nova ordem secular, democrata, estável.


   A que ficou conhecida pela ‘Revolução Jasmim’ teve o seu ímpeto original a Novembro de 2010, quando o WikiLeaks e cinco grandes cadeias mediátocas (El País, Espanhol; Le Monde, Francês; Der Spiegel, Alemão; The Guardian, Britânico, e The New York Times, Americano) publicaram simultaneamente os primeiros 220 de 251.287 documentos revelados por ‘leak’, anteriormente rotulados como confidenciais.  Estes documentos, revelavam tendências que vastamente se equiparavam aos seus parceiros do mundo árabe: elencadas entre elas, descrições de corrupção, e repressão pelo regime tunisino. Por exemplo, tendo em conta asduas centenas de firmas pertencentes a membros da família que foram apreendidaspelas autoridades tunisianas após a queda do regime, o Banco Mundial determinouque, enquanto as empresas correspondiam a apenas três por cento da produçãoeconómica, elas controlavam 21 por cento dos lucros do sector privado – isto pintava o quadro geral do seu governo, caracterizado pelo desenvolvimento do setor privado da Tunísia em prol do investimento estrangeiro, procurando beneficiar em primeiro lugar a sua família, ao passo que impunha um regime de silêncio, medo, repressão à oposição política. Qualquer forma de protesto arrogando oposição ao regime no país foi anteriormente reprimida e mantida em silêncio, como no caso do silenciar dos protestos de centenas de manifestantes desempregados em Redeyef em 2008.

   Dos ímpetos, palavras de ordem, conquistas da revolução Jasmim na Tunísia, rapidamente transbordou para os vizinhos de contexto igual, como vizinha Líbia, e a distante, mas equiparável Síria: rica e próspera,  ao passo que, silenciada, desigual e oprimida.
   A Líbia que na teoria era, segundo o ‘Livro Verde’ do seu líder, e auto-intitulado ‘Líder Fraternal e Guia da Revolução’ Muammar Gaddafi, um estado descentralizado e aderente à democracia directa, no qual o líder fraternal se dizia de mera figura simbólica, oficialmente negando deter qualquer poder. Não obstante, esta ótica tinha um senão – sendo que  Gaddafi austentou a chefia dos militares e dos ComitésRevolucionários responsáveis pelo policiamento e supressão da dissidência.

   Apesar de, debaixo do jugo de Gaddafi, a Líbia ter saído da armadilha da pobreza, subdesenvolvimento, atraso deixado pelo domínio colonial Italiano, tal como pelo inepto reino de Ídris I. Este desenvolvimento, alimentado pela prospecção de combustíveis fosseis, e cooperação com o regime de Nasser no Egipto, resultando no estado africano com o Índice de Desenvolvimento humano maiselevado – tendo como custo a imposição de um regime classificado como o estado mais censurado do Oriente Médio e Norte da África, como classificado pelo Índice de Liberdade de Imprensa. O socialismo Líbio procurava estabelecer educação gratuita, cuidados de saúde e habitação e transporte subsidiados, mas sendo que a falta de empregos fora do governo significou níveis de desemprego estimado nos 30% tal como salários extremamente baixos e a riqueza do estado, sendo que os lucros dos investimentos estrangeiros, tal como na Tunísia, beneficiaram apenas uma pequena elite. Para além disso, o governo Gaddafi ter sido, para além de repressão brutal interna, foi acusado de terrorismo externo, como nos atentado ao voo Pan Am 103 sobre Lockerbie.

   A convulsão do fim do regime foi despoletada por protestos em Zawiya a 8 de agosto de 2009, sendo que finalmente foi desencadeada por protestos em Bengasi, a  15 de fevereiro de 2011 - o que levou a confrontos com as forças de segurança que em pânico, abriram fogo sobre a população. Sensível às atrocidades cometidas pelo regime no âmbito da queda do regime,foi Bernard-Henri Lévy – reputado filósofo e intelectual, aclamado na França -que, em março de 2011, persuadiu o então presidente francês Nicolas Sarkozy areconhecer os líderes da emergente oposição da Líbia. E foi Sarkozy que directamente interpelou a David Cameron para o apoiar na tentativa de ‘regime change’, daí galvanizando a comunidade internacional perante a planeada intervenção militar na Líbia. Em agosto, as forças rebeldes lançaram uma ofensiva na costa da Líbia, bastião do governo, ofensiva apoiada pelos meios aéreos grande alcance da NATO (sancionados por resolução da ONU), retomando o território perdido meses antes e, finalmente, capturando a capital Trípoli. Não obstante, o resultado e opinião pública perante tanto o status quo pós guerra, e perante os líderes arautos desta revolução, Cameron e Sarkozy, muito se alterou, tendo em vista o fracasso da reconstrução do estado, sendo que o estado reconhecido na ONU foi forçado a evacuar Tripoli para uma pequena cidade fronteiriça do Egipto, sendo Trípoli ocupada por um governo rebelde, sobre aégide do marechal de campo Khalifa Belqasim Haftar. Devido à confusão entre o que era um esgotamento do regime no domínio interno -  e a vontade externa de certos atores de encabeçarem uma mudança de regime – o rescaldo da primavera fez-se inverno.

   Na Síria, um regime anacrónico, de partido dominante - onde o partido dominante, o partido Baath – que pugna por um regime visando o socialismo pan-arabista, emanado no rescaldo da separação da Síria da ‘Republica Árabe Unida’ (a fusão entre Egipto e Síria de 1958-1962) dominada pelo presidente do Egipto, de cariz ideológica pan Arabista, Gamal Nasser – implementado inicialmente pelo ideólogo Michel Aflaq - crítico do capitalismo e do comunismo, e crítico da visão de Karl Marx do materialismo dialético como a única verdade. Este regime, apesar de ter tido sucesso, sobre o jugo de Hafez al-Assad, no rescaldo da desordem emanada dos conflitos entre partido Baath e forças Egípcias e o partido comunista apoiado pela União, soma como corolário do seu mandato a capacidade união do território Sírio, sendo que Assad se destacou de seu antecessor no início, visitando aldeias locais e auscultando reclamações dos cidadãos. Com este factor de união, Assad reduziu os preços dosgéneros alimentares básicos em 15%, o que lhe rendeu o apoio de cidadãos comuns– sendo que com esta boa vontade, tem mandato para estimular o crescimento dosetor privado. Não obstante não tomou a oportunidade de democratizar o país, tendo encetado uma oposição cerrada contra minorias Curdas, tendo como infame marca desta opressão o massacre em Hamá.

   Aquando da morte de Hafez, sobe ao poder o filho, Bashar al-Assad, que preserva o equilíbrio estabelecido pelo pai: maioria Sunita no domínio nominal das instituições políticas, e minoria Alauita (da qual a família Assad faz parte) na chefia das instituições militares, de segurança e das secretas. Sendo esta ordem mantida, manteve-se o controlo de Bashar por parte de uma antiga elite do partido Baath do regime do seu pai – equacionando-se impossível reagir com abertura ao ímpeto ‘liberalizador’ do movimento da sociedade civil organizada no que foi conhecido por ‘Primavera de Damasco’. Não obstante, Bashar decide desviar da linha do pai no tocante à defesa, sendo que aquando tomou o poder, Bashar fez a ligação da Síria com oHezbollah – e por atropelo com os seus patronos em Teerão - o componentecentral de sua doutrina de segurança – tal como na  sua política externa, Assad arrogou-se abertamente em oposição Estados Unidos, Israel, Arábia Saudita e Turquia – daí delineando os contornos mais tarde pelos quais se delinearia a guerra proxy em solo Sírio. A força de atrito estabelecida entre regime e sociedade civil em primavera entra em colisão aquando da Revolução Jasmim na Tunísia - A 26 de janeiro de 2011, eclodiram em massa manifestações na Síria.
 
   Os manifestantes reivindicavam  reformas políticas e a reintegração dos direitos civis, bem como o fim do estado de emergência que estava em vigor desde 1963. Ora, sendo que se jogavam, como mencionados, interesses Ocidentais,que se alinham com uma frente de oposição coligada, conhecida por ‘ExércitoSírio Livre’ – sendo os interesses orientais, nomeadamente da ‘tríplice aliança’Moscovo-Pequim-Teerão se alinham na manutenção do regime. Mais tarde surgem com influencia mais duas frentes, que suplantam o Exército Livre, a frente doEstado Islâmico (que vem a surgir na base das antigas frentes al-Nusra eal-Quaeda) e a Frente Curda (que se estabelece como estado independente deRojava, e vem a depender de elementos armados vindos da Peshmerga Iraquiana. Com a grande confluência de interesses externos, tal como a imiscuidade entre os mesmos objectivos e interesses, tal como a inesperada vitalidade do regime – esta primavera, de modo igual, apesar de com equilíbrios diferentes, transformou-se no inverno onde a Líbia congelou.

O caso do Iémen é um caso híbrido entre os dois anteriores. Como estado particionado entre o Iémen do Norte, de forte presença ‘zaidita’ (xiita) e de regime conservado salafista com capital em Sana‘a, na esfera de interesses dos EUA- e Iémen do sul (antigo Hadramaut), de presença dominante sunita, de regime socialista, satélite da URSS, capital em Áden --- o Iémen era o caso paradigmático de um estado congelado por interesses proxy distantes. Desde 1978 que o Norte foi governado por Ali Abdullah Saleh, que, estabelecendo um estado governado por um punho de ferro, com apoio do ocidente, consegue unificar os dois Iémens com a queda do muro de Berlin, mantendo assim um estado alinhado à NATO, sendo que esta tinha interesse em manter perto um importante aliado (sendo este de forte presença Xiita) no equilíbrio de forças contra o Irão, e mais tarde no contexto de guerra contra o terror, um espaço seguro para destacar de forças da NATO, e outras necessidades de guerra.  Com arevolta do antigo Hadramaut contra o regime musculado e pró-xiita de Saleh, o movimento organizado secessionista do antigo Iémen do Sul, o ‘Al-Hirak’, desde 2009 ensaia manifestações em prol da secessão - que junto do efeito de Arrasto da Primavera Árabe, a posição de Saleh torna-se insustentável , sendo substituído pelo general Hadi, do mesmo partido.

Com a continuada pressão do al-Hirak, e redobrados interesses conflituosos entre Arábia Saudita e Irão pelocontrolo da região, dá-se o re-eclodir do ambiente revolucionário em 2015, coma eclosão de uma guerra civil, e a intervenção de grande escala da ArábiaSaudita, comandada pelo príncipe herdeiro Mohammed bin Salman. Como no caso da Líbia, onde a intervenção externa traz confusão e desorganização interna, e no caso da Síria, onde a confluência de interesses precipita o congelar de conflitos, o que se aparentava de ser primavera, inverno foi.
O Sudão é um caso paradigmático. Durante toda a sua história, tratou-se de um país em influenciação externa -  com a queda do estado Mahdista perante o Império colonial Britânico -  que coloniza perante o ímpeto de ligar ‘o Cabo ao Cairo’, o Sudão é uma nação perdida em interesses alheios, sendo mais tarde dualmente colonizada pelo R.U. e pelo recente independente Egipto, sobre forma de condomínio (em RI, o domínio duplo de um estdo por duas forças externas).

   Na sua independência, o Sudão é governado por duas figuras dominantes: Jaafar Nimeiry, e Omar Bashir (que governa até o inicio do ano).  Nimeiry apresenta-secomo uma figura de ‘punho de ferro com luva de couro’ tendo governado em trêsfases: uma primeira alinhado ao pan-Arabismo de Nasser, uma segunda (conhecida de fase de reconciliação nacional) alinhado à Irmandade Muçulmana e suavemente à URSS, sendo encimado por uma terceira fase mais linha dura, onde começa a perseguir a dissidência -  autorizando a execução do dissidente político e clérigo reformista Ismail Al-Azhari, uma fase onde se alinha com os EUA. Com a queda do seu regime, e meia década de interregno politicamente vacante, dá-se a subida ao poder de Bashir - que aproveita um período de boa fé do governo de interregno , que abria negociações com o sul do país predominantemente animista e cristão – para impor um regime de medo, durando três décadas, onde persegue oposição: a milícia Janjaweed , grupos rebeldes como o Exército de Libertação do Sudão,e o Movimento de Justiça e Igualdade – Bashir enveredapor um genocídio na região do Darfur, sendo durante décadas o alvo do ódio dacomunidade internacional, e persegue e massacra o sul, até este, sobre égide da ONU, consegue a sua independência.

   Até agora, o Sudão demonstra-se ser dominado por regimes genocidas como na Síria, demonstra-se confluído por interesses externos como no Iémen, dependente de homens fortes como na Síria, sem moderação do seu governo, e destruído internamente por intervenção externa (apesar de bem intencionada, a secessão do sul enfraqueceu o povo do Norte, e gerou guerra civil na nova nação do sul). Ao contrário da Tunísia, não houve primavera no regime, nem chegou a decorrer o inverno que sucedeu com as outras nações.
 
 Não obstante, a 19 de dezembro de 2018, uma série de manifestações – liderados e organizados pela organização de sociedade civil, a Associação de Profissionais do Sudão -  irromperam em várias cidades do Sudão, em parte devido ao aumento dos custos de vida e à deterioração das condições econômicas em todos os níveis da sociedade, com apelos fortes pela parte da sociedade civil pelo golpe de regime– concretizadas na manhã de 11 de abril de 2019, quando o presidente Bashir foi retirado do poder pelas Forças Armadas.

   Inicialmente, apesar do golpe aparentar de ser uma primavera efémera, rapidamente sucedida por um inverno – onde o regime de Bashir visava ser substituído por uma junta dos seus próximos – na forma de uma junta liderada pelo general Ahmed Awad Ibn Auf, do mesmo partido de Bashir, e cúmplice na guerra do Darfur.
   Não obstante, ao contrário do que se observou nos casos Sírio, Líbio e Iemenita, a Associação de Profissionais do Sudão, e não uma conjunção de forças externas, re-foca a sua pressão (que exercia em Bashir) em Ibn Auf, para que este seguisse o exemplo de Bashir, saísse, e desse lugar a uma junta independente.

   O inesperado acontece: o povo é auscultado. Após um dia de governo, Ibn Auf sai, dando lugar no seu comando como líder da junta o general Abdel Fattah Abdelrahman Burhan, considerado de ser extremamente mais moderado, considerado de distante do antigo regime – sequer tendo feito parte militante do partido de Bashir – e sendo uma figuraque decide no seu mandato interino até ao presente, auscultar e dialogar com opovo. Burhan, ao contrário de Ibn Auf, promete a transição da junta para umgoverno civil-militar de transição para a preparação da transição para ademocracia e liberdade dos sudaneses. Da primavera fez-se num dia inverno, não obstante das nuvens pesadas do inverno saíram os primeiros raios de um promissor verão Árabe.

Este caso é importante para a região em duas ópticas. Por um lado, demonstra o caminho a ser tomado, no contexto de Mundo Árabe: tanto à Síria, como na Líbia, como no Iémen - para a liberação do povo de um regime tirano - seguindo o modelo Tunisino, no qual a sociedade civil deve liderar a revolução e transição – como subsequente gestão da transição. O Sudão opta por um caminho que começa a dar fruto, um caminho denotado de sucesso, como no caso da Tunísia – ao invés do fracasso invernal da Síria, Líbia e Iémen.
 Não obstante, para presente, o caso do Sudão deve servir para inspirar o caminho a ser seguido por Líbia, Síria e Iémen – uma vez que demonstra a possibilidade de não só quebrar do jugo de tiranos, como fez com Bashir e Ibn Auf – mas também ultrapassar a fase do Inverno, na qual há anos se encontram os três mencionados.

 O Sudão segue o exemplo da Tunísia, e demonstra que há caminho a ser seguido. No entanto resta ver se conseguirá emular a Tunísia e fazer que Burhan seja como no caso de Marzouki na Tunísia, um estelar líder de transição, criando para a posterioridade um regime moderado, secular e e democrata- ou será um líder que da transição tomará oportunidadede criar um novo regime linha dura - um regime estilo Outono Árabe, como de AbdelFattah Al-Sisi no Egipto. Só o tempo dirá que estação o Sudão, e por arrasto os seus vizinhos, se sintonizará.


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