O manual de instruções da vigilância governamental


Fonte: CartoonStock

“(…) Because, remember, I didn’t want to change society. I wanted to give society a chance to determine if it should change itself.” – Edward Snowden em entrevista com o The Post.

São quase horas de terminar mais um dia do exercício de funções – mais um dia que consiste em seguir ordens e zelar pelo suposto interesse e sustentabilidade do regime. No entanto, este dia não termina como todos os outros, mas sim de forma desconcertante para a consciência de um alguém que, após lidar diariamente com informação que sabe ser alterada quando é transmitida para as massas, se tornou num elemento que pode ser considerado por muitos que o rodeiam como um ser com falta de humildade e autodisciplina e, consequentemente, encarado como a minoria de um só pelas decisões tomadas doravante.

Esta narrativa poderia ser atribuída ao quotidiano de duas personagens. Uma delas seria Winston Smith – na sua realidade, escriturário no Ministério da Verdade que, posteriormente, se torna alvo de perseguição por se tornar um “crime-pensante” mas na nossa realidade, personagem principal fictícia mundialmente reconhecida através do “1984”, um livro distópico escrito por George Orwell – e, a outra, seria Edward Snowden – não existente em outra realidade para além da nossa e, outrora, um dos programadores informáticos subcontratados pela National Security Agency (NSA) com igual dimensão de reconhecimento por ter sido aquele que veio a expor documentos ultrassecretos sobre as práticas de vigilância doméstica da NSA.

Apesar da expressão “crime-pensante” enaltecida na distopia não ser aplicada nas legislações tanto nacionais como internacionais, existe um termo que se encontra no prato do dia: whistle-blower. Um whistleblower – o denunciante – consiste numa pessoa que compartilha o seu conhecimento de atividades que crê serem prejudiciais, adquirido através do seu trabalho em determinadas organizações ou departamentos.

É com este termo que, a partir de junho de 2013, Edward Snowden passa a ser conhecido quando, em exclusivo através do The Guardian, é lançada uma notícia que dá a conhecer o facto da NSA ter na sua posse, diariamente, uma coletânea dos registos telefónicos de milhões de clientes da Verizon – tornando assim a maior operadora de telemóveis dos Estados Unidos numa espécie de parceira da vigilância global.

Não é a primeira vez na história dos governos que se ouve falar de enormes investimentos em questões de vigilância e espionagem, porém, somente com as revelações deste se obteve documentos verídicos e concretos da proporção que todas as leis aprovadas, nos Estados Unidos da América, permitiram alcançar. Em 2001, aquando o governo de George W. Bush e apenas semanas após os ataques às Torres Gémeas, nasce o Patriot Act que pode ser considerado como uma espécie de cheque em branco para a expansão da vigilância com o pretexto de vir a evitar novas ocorrências catastróficas.

Ao explorar um pouco mais sobre o que este consiste, deparamo-nos com a existência da secção 215 que pressupõe a garantia de acesso a qualquer coisa tangível que sirva os propósitos da “proteção contra o terrorismo internacional” enquanto que supervisionado pelo United States Foreign Intelligence Surveillance Court (FISA Court) para o requerimento da informação – contudo, há que ter em mente que entre 1979 e 2017 foram aprovados cerca de 40,092 pedidos de vigilância tendo sido somente rejeitados 85.

Porém, este foi submetido a revisões – dando a oportunidade de se reformar ou de se extinguir - mas essas tiveram um interesse mediano ou, até mesmo, mínimo nos meios de comunicação tendo sido necessário um escândalo para chamar a atenção e, típico do que conhecemos da resolução de problemas governamentais americanos, foi criada a imagem de uma ovelha negra em torno de Snowden relembrando, novamente, o regime do livro “1984” que se caraterizava da seguinte maneira: “(…) O mandamento do antigo despotismo cingia-se a «Tu não farás»; o mandamento dos totalitarismos, a «Tu farás». O nosso mandamento é «Tu és» (…)”.  

Contudo, enquanto o “1984” se encontra delimitado a cerca de 300 páginas, as políticas de vigilância governamental de uma das consideradas maiores potências mundiais transcendem o que possa ter sido imaginado pelo autor – o próprio Snowden considera que o ocorrido com o Grande Irmão na distopia não se encontra nem perto de alcançar as atuais capacidades da NSA.

Afinal, esta capacidade coloca no ar a dicotomia de privacidade ou segurança que, ao olhar “mais desatento”, parece fácil de decisão pois não existe um alguém que ambicione viver num local que não lhe proporcione o mínimo da segurança e, se segundo a afirmação dos seus representantes, a vigilância não o afetará pessoalmente, quem será este para se questionar?

Infelizmente, o pior cego é aquele que não quer ver e governo após governo comprova-se que, neste caso, os Estados Unidos da América – novamente, à semelhança do pensamento orwelliano – são eficientes em invadir – desta vez, os seus próprios cidadãos - e saírem por cima da situação. Em 2019, encontramo-nos mais perto de 1984.

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