Relatório Mueller: Os Estados Unidos Provam do seu Próprio Veneno


"Os EUA que tanto prezam o mundo livre não se abalaram significativamente nem após a divulgação deste relatório nem com a sua própria longa tendência de intervenção em eleições de terceiros."

A polémica eleição de Donald Trump voltou a ser tema na passada semana, quando no passado dia 18 de Abril, o relatório Mueller se tornou público; embora com 40% do seu conteúdo censurado, por motivos de ordem legal, o relatório de Robert Mueller foi publicado no site do Departamento da Justiça, após ter sido imediatamente enviado para a Câmara dos Representantes e para o Senado.

Sumariamente, as 448 páginas, como descreve Pedro Guerreiro, foram um grande “nim”; nem “sim” nem “não” à intervenção Russa nas últimas eleições dos Estados Unidos da América. A citação do relatório mais destacada para demonstrar tal “nim” foi a seguinte: “se tivéssemos confiança suficiente para firmar que o Presidente não cometeu nenhuma obstrução à Justiça, tê-lo-íamos feito”, no entanto, as provas não foram suficientes para proceder com tal acusação.

Neste sentido, é claro que o Presidente se declarou mais do que inocente, utilizando no Twitter uma imagem inspirada na estética cinematográfica da popular série Guerra dos Tronos na qual se lê “Não houve obstrução, não houve conspiração. Para os haters e esquerdistas radicas: fim do jogo”; com o objetivo de enterrar definitivamente o assunto.

Embora o relatório Mueller não comprove uma relação direta entre a influência Russa e o desfavorecimento de Hillary Clinton nas últimas eleições, traz confirmações e revelações que deveriam colocar em causa a atual presidência norte-americana. Uma das mais polémicas revelações, foi a reação do Presidente perante a abertura deste relatório: “oh meu deus, isto é terrível. (…) Isto é o fim da minha presidência”, reação bastante distinta da imagem de tranquilo inocente que tem demonstrado ao público. No entanto, uma reação expectável agora que se revelou que Trump pediu a Don McGahn, advogado da Casa Branca em 2017, que fizesse pressão para que o Procurador Mueller fosse despedido; McGahn demitiu-se e não cumpriu a ordem do Presidente.

Curiosamente, supostos aliados de Trump que optaram por não cumprir as suas ordens, foi um padrão verificado nas denúncias deste relatório; este facto aliado a pura incompetência de alguns deles, acabaram por poupar o Presidente de acusações efetivas e mais graves de obstrução.

Em relação à intervenção Russa, o relatório reforça e completa a acusação à GRU, o Departamento de Inteligência Russa, pelo roubo de documentos ao Partido Democrata e ao diretor de campanha de Hillary Clinton.

A acusação não termina aqui e relaciona a secreta russa com outro ator de política externa, agora de volta à ribalta; a Wikileaks. De acordo com o Público, o relatório explicita que, em 2016, as unidades do GRU transferiram os documento para o Wikileaks; para tal, utilizaram a DCLeaks e a Guccifer 2.0 para comunicar através de mensagens privadas no Twitter e canais encriptados. Após o primeiro conjunto de e-mails comprometedores para Clinton ter sido publicado na Wikileaks, a organização russa contacta-a e propõe que todos os documentos do mesmo teor sejam lançados em simultâneo; como se verifica na troca de mensagens entre ambas exposta no relatório.
 
A investigação, no âmbito da troca de mensagens, demonstra ainda a hostilidade de Julian Assage, cofundador da wikileaks, em relação a Hillary Clinton. O relatório expõe mensagens suas mas quais lhe chama de “sociopata sádica, inteligente e bem relacionada”, no sentido de recear que a sua vitória represente a vitória do sistema e os “democratas, imprensa e neoliberais” fiquem calados, incentivando as “piores qualidades” de Clinton.

Embora as acusações sejam chocantes, o mais assustador para a democracia são todos os mecanismos de defesa que um Presidente norte-americano tem perante a lei. Para que o Presidente Trump seja formalmente acusado de crime de obstrução da Justiça, pelo menos uma das dez acusações de Mueller teria de ser interpretada, por todos no Departamento de Justiça, como tal; algo impossibilitado porque William Barr, atual Procurador-Geral dos EUA, não achou apropriada a decisão de processar Trump.

Barr, para sorte do Presidente, defende que só existe obstrução da Justiça se a intenção do acusado for realmente essa. Por exemplo, se Trump afirmar que as suas tentativas no sentido de impedir a investigação de Mueller foram um esforço do Presidente para combater desinformação relativa à sua pessoa, o Presidente estará isento de acusações de obstrução da Justiça.

Após todas estas informações expostas na comunicação social, ainda nada aconteceu. Os EUA que tanto prezam o mundo livre não se abalaram significativamente nem após a divulgação deste relatório nem com a sua própria longa tendência de intervenção em eleições de terceiros.

O histórico de intervenção dos EUA em eleições externas é demasiado extenso para que seja detalhadamente analisado neste contexto, no entanto, exige-se uma enumeração de alguns dos casos para que a sua dimensão fique clara: Itália 1948 a favor dos democratas-cristãos, Irão 1953 com o afastamento de Mohammad Mosaddeq, Chile 1973 contra Salvador Allende, Honduras 2009 aprisionando Manuel Zelaya.

Desta vez, os Estados Unidos morderam a língua e provaram do seu próprio veneno. As eleições daqui a um ano e meio dirão se uma enorme quantidade de informação comprometedora ainda é capaz de influenciar e responsabilizar a classe política ou se a democracia se encontra progressivamente mais adormecida. 

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